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01-04-2003

Carta a um amigo


Fogueira

Memórias da Fogueira Carta a um amigo A minha terra é a Fogueira. Eu gosto muito da minha terra. Provavelmente terei agrupado por esta ordem algumas das primeiras letras que rabisquei, nessa altura com uma consciência muito difusa do sentido que faziam. Passado muitos anos, a vida ensinou-me a importância de todos, e cada um de nós, termos um referencial de origem – um ponto no tempo e um ponto no espaço. O meu ponto no tempo foi o momento exacto em que “berrei”, ofuscado pela luz do dia ou talvez arrepiado de frio pela falta da capa que era o corpo da minha mãe: qual destas razões motivou o berro já não me recordo muito bem, mas valeu a pena. O meu ponto no espaço é a Fogueira. Aí, recordo bem, ouvi pela primeira vez os sons que ainda oiço quando fecho os olhos. O crepitar da lenha à lareira quando à noite me acolhia entre as pernas do meu pai sentado, o bater do martelo na bigorna moldando o ferro vermelho pelo fogo na forja dos Cercas em frente à casa da minha avó. Casa onde, menos vezes do que desejava, me refugio e ainda ouço o “chiar” agudo de um violino ao desafio com uma voz cristalina de mulher, os bordões e harpejos de uma viola por vezes descompassados com o bater em algo que servisse de bombo, por alguém que hoje é para mim, e eu sei que para ti também, muito mais que um amigo. Ouço ainda, ao cair das noites de Inverno, o som grave e distante de um búzio soprado por quem, tentando conseguir mais alguma coisa para matar a fome, anunciava ter “cricos” para vender. Ouço ainda, ao cair das noites de Verão, o zunir dos moscardos que rondavam até cair as copas das árvores do largo da feira. O largo da feira......O largo da feira era, por esse tempo, o horizonte que se me abria, mas também o limite para as minhas aventuras. Era o mundo que comecei a contemplar da minha janela. Terá sido para lá que os meus passos trémulos se dirigiram quando, pela primeira vez, sozinho cruzei a porta da casa onde fui gente. Certamente para brincar com o Henrique, com o Tóino “Pelhoa” ou quem sabe contigo. Foi lá que vi subir o balão e queimar o Judas feitos pelo “Sapateiro de Aveiro” na Páscoa e vi arder uma noite inteira um pinheiro enorme lá “plantado” no S. João. Foi no largo vazio que subiu às alturas, mas também caiu, a minha estrela feita de fio carreto, canas e papel de seda colada com farinha de trigo. Foi no largo cheio que, pela primeira vez, senti o que é a balbúrdia das feiras deste mundo. Foi no largo que vi horrorizado matar e esfolar, ainda meias vivas, as cabras que chegavam em rebanho nas vésperas dos dias de festa. Mas foi também no largo da feira que, pela primeira vez, percebi quão interessante podem ser uns olhos bonitos, um cabelo preto e um corpo gracioso dento de um vestido, cuja cor já não me lembro, porque certamente não era importante. Tu terás certamente outras recordações que te marcaram, acredito. Mas lembras-te de certeza, Sérgio Aidos, das tardes de Domingo, quando os homens jogavam a malha e nós, os meninos, jogávamos a bola: arte esta como outras para que eu e tu não tínhamos grande jeito, mas éramos esforçados. Jogos da bola bruscamente interrompidos quando alguém da porta do café gritava -vai começar o filme. Então, entrávamos de roldão, derrubando cadeiras e mesas, procurando o lugar mais à frente. Mas logo éramos postos na ordem pelo berro rouco e a bengala em riste do Sr. Miranda “Velho”, que era de todos nós o telespectador mais atento. Como eu, e certamente também tu, me sentia o ser mais feliz do mundo bebendo uma gasosa “Buçaco” e comendo um pastel de amendoim, o que me custava a totalidade da semanada, ao mesmo tempo que chorava e ria com o Josélito e o Bonanza. No fim, à saída, enquanto os nossos olhos se habituavam de novo à luz, e antes de regressarmos contrariados a casa, olhávamos pela última vez naquele dia o cenário dos nossos filmes, o campo das nossas batalhas, as sombras das árvores projectadas pelo sol já baixo no chão do largo da feira. Então, e estou certo que tu também, sentíamos quase sem o sentir, que algo estava ali a mais, perturbando e tornando incoerente o palco do nosso imaginário, violentando a beleza das coisas simples e harmoniosas. Eram os restos da feira do dia anterior espalhados pelo vento, eram os rasgos na terra deixados pelos homens no bater das malhas e no endireitar do finte, eram os montes de pedras ou os paus ao alto que marcavam as balizas deixados por nós, os meninos. Hoje, como tu, conheço muitas praças e largos em várias partes do mundo, mas nenhum tão belo como o largo da feira da Fogueira que recordo, em que as fontes jorravam alegres das gargantas dos meninos e escorriam rubras e tintas das canecas para as goelas dos homens, em que os monumentos eram verdes na Primavera e pardos no Outono, exalando um cheiro doce no Verão e espalhando um manto fofo de folhas no Inverno. Pensa nisto. S. Mamede de Infesta, 10 de Fevereiro de 2003 Amílcar Moreira (20 Fev 03 / 9:07)

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